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A ascensão do Quarterback negro na NFL

Mesmo quem não acompanha o futebol americano já deve ter visto – em algum filme de sessão da tarde ou sitcom chinfrim – aquela cena em que o jogador mais famoso da escola/universidade caminha impávido com a cheerleader mais popular a tiracolo.

Se você prestar atenção, irá perceber que esse jogador é um quarterback, posição mais glamurosa do futebol americano. Ele chama as jogadas, faz os passes e fica com toda a glória. É uma posição tão privilegiada que, dependendo de como é atingido, é marcada falta. Inúmeros são os casos de QBs que foram chamados de “boboca” ou “cara de mamão” e foi marcada uma falta anti desportiva, pois feriu os sentimentos do moço.

Outra coisa que você vai lhe chamar atenção, caso você olhar atentamente, é que, raríssimas vezes, esse galã de queixo quadrado e cabelos ao vento, esse Capitão América de jaquetinha varsity, não é branco. Afinal, mais do que tudo, ele é um herói.

Mas não culpe a indústria do entretenimento e os nepo babies por isso, de certa forma eles só estão reproduzindo o que eles vêem nos estádios e telas de televisão. Afinal, a posição de Quarterback é a mais branca das posições. Não necessariamente por ter mais brancos per capita (provavelmente a proporção de punters é ainda maior), mas por ser a mais privilegiada de todas.

Mas por que essa diferenciação, por que em uma das posições mais importantes dos esportes norte-americanos temos essa maioria branca e (com raras exceções) make amerikkka great again?

A ascensão do Quarterback negro na NFL
Elway, Marino e Montana – O que eles tinham em comum?

Os passadores de pano de plantão 24/7 irão dizer que é genético, que é uma habilidade natural do homem branco médio ser um  melhor lançador, assim como a África Central fornece os melhores maratonistas e a região da Serra Gaúcha os melhores franco atiradores de estilingue para matar passarinho.

Seria uma boa desculpa, se ela fosse verdade. Se pegarmos um esporte ali do lado, o basquete da NBA, dois dos melhores jogadores norte-americanos de toda história da liga eram/são negros e excelentes passadores (LeBron James e Magic Johnson). Obviamente são esportes completamente diferentes, como já diria Marc Sessler.

Porém, o motivo é outro. Não só a NFL, mas o futebol americano como um todo, realizou um esforço descomunal para garantir que os QB negros não participassem da liga. E o principal divulgador dessa “causa” foi o antigo dono do Washington Redskin (hoje Commanders) George Preston Marshall.

Os trechos a seguir foram retirados da página desse senhor “ótima companhia para receber na ceia de Natal” da wikipédia:

Como resultado de um “acordo de cavalheiros” promovido por Marshall, os times da NFL não contrataram jogadores negros até 1946, quando dois times quebraram o acordo. Marshall se recusou a fazê-lo, alegando que integrar o time faria com que o time perdesse torcedores no sul dos Estados Unidos e seu time era na época o time mais ao sul da NFL. Ele disse que “Começaremos a contratar negros quando os Harlem Globetrotters começarem a contratar brancos”.

Sua recusa em se integrar era rotineiramente ridicularizada por Shirley Povich, colunista do The Washington Post, que o chamou de “um dos maiores inovadores do futebol profissional e seu principal fanático”. 

Marshall minimizou a questão da integração, dizendo “Estou surpreso que, com o mundo à beira de outra guerra, eles estejam preocupados se um negro vai ou não jogar pelos Redskins” e duvidou que “o governo tivesse o direito de dizer o showman como lançar a peça.” Marshall teve uma rivalidade de longa data com o acionista do Redskins, Harry Wismer, que favorecia a integração.

Em 1962, o secretário do Interior dos Estados Unidos, Stewart Udall, e o procurador geral dos Estados Unidos, Robert F. Kennedy, emitiram um ultimato: a menos que Marshall contratasse um jogador negro, o governo revogaria o contrato de aluguel de 30 anos dos Redskins no DC Stadium (mais tarde conhecido como RFK Memorial Stadium). Udall e Kennedy estavam dentro de seus direitos de tomar essa ação, já que o DC Stadium havia sido financiado com dinheiro do governo e estava localizado em terras federais. Além disso, a Constituição atribui ao Congresso e, ipso facto, ao governo federal, a autoridade final sobre a capital.

Veja bem, estamos falando da década de 60 nos EUA, década do movimento pelos direitos civis, Martin Luther King e Malcolm X, e foi necessário a intervenção do governo federal para que um dos times contratasse um jogador negro, quem dirá um quarterback (nos times universitários do sul a história foi ainda pior).

O primeiro quarterback negro da era moderna da NFL foi Marlin Briscoe, que atuou pelo Denver Broncos em 1968, porém não lhe foi dada a oportunidade de comperir pela posição no ano seguinte, o que fez o atleta trocar de posição nas temporadas seguintes. 

A ascensão do Quarterback negro na NFL (2)
Marlin Briscoe em atividade pelo Denver Broncos

Seu antigo colega de time, James Harris, teve mais sorte e foi o primeiro QB negro a começar um temporada da NFL quando jogou pelo Los Angeles Rams, chegando a levar o time as playoffs.

Porém, pouco mudou nas décadas seguintes. Alguns times arriscavam selecionar quarterbacks negros, mas na maiorias das vezes pediam para eles trocarem de posição. Mesmo com o sucesso de Warren Moon pelo Houston Oilers e com a vitória de Doug Williams no Super Bowl de 1987 pelo, vejam só, Washington Redskins, poucas oportunidades apareceram.

A ascensão do Quarterback negro na NFL
Colin Kaepernick ousando ter opinião

Nos anos 2000, alguns nomes importantes surgiram, como Michael Vick e Donovan Mcnabb, e que atraíram um pouco de atenção. Mas só foi a partir da segunda década do milênio que alguma mudança começou a acontecer. Russel Wilson, Cam Newton e Colin Kaepernick foram alguns que pavimentaram o caminho para o próximo Super Bowl, o primeiro SB com dois quarterbacks negros.

Patrick Mahomes

A ascensão do Quarterback negro na NFL

Quando o Kansas City Chiefs, rival histórico do então Oakland Raiders, selecionou Patrick Lavon Mahomes II na décima posição do draft de 2017, confesso que senti um arrepio na espinha. Não que eu entendesse alguma coisa sobre atletas provenientes das modalidades colegiais (não entendo nem das profissionais), mas aquilo me pareceu um mal presságio (sou conhecido pelo meu otimismo).

Os Raiders vinham de uma temporada positiva depois de quase 15 anos de dor e sofrimento, e que só foi interrompida pela lesão de seu QB, Derek Carr. Porém os Chiefs tinham um time bem montado e também estavam em ascensão. Só precisavam de uma última peça. Mahomes foi essa peça.

O camisa 15 logo demonstrou ao mundo do futebol americano a que veio – preciso, frio, móvel, ótimo braço – qualidades essenciais ao um ótimo quarterback. A essas ele adicionou um tempero que muito raramente é encontrado nos atletas da posição. 

Enquanto os quarterbacks normais tentavam acertar a maioria dos passes possíveis (meio que o objetivo do jogo, afinal), Mahomes tentava esses e mais. Passes que até então pareciam impossíveis – contra o movimento do corpo, com o braço fora da posição habitual, em movimento – tudo ele era capaz. Não à toa alguns de seus apelidos no Pro Football Reference  são “Showtime, Magic Man”, ou seja, eram passes nada comuns que apenas alguém com a criatividade de Magic Johnson seria capaz.

Mas esse tempero não o levaria a lugar nenhum sem vitórias e elas vieram logo. Em todas as suas temporadas como titular, os Chiefs venceram mais de 11 jogos (em uma temporada com 16 ou 17 jogos no máximo) e foram para os playoffs. Venceu o Super Bowl de 2019, perdeu o de 2020 e vem para mais um esse ano. Impressionante.

Jalen Hurts

A ascensão do Quarterback negro na NFL

Se Mahomes ainda é um QB muito jovem – 27 anos – Jalen Alexander Hurts é um nenê, apenas 24 primaveras. Não à toa esse é o Super Bowl com a menor média de idade entre os QBs titulares. Ao contrário do adversário que jogou na mediana Texas Tech, Hurts recebeu um convite para jogar por Alabama, a universidade mais famosa do futebol americano universitário.

Para se ter uma ideia da mística de Alabama, vocês se lembram da cena de Forrest Gump em que ele sai correndo do estádio? Pois então, ele jogava por Alabama que nos anos 60/70, época em que o filme se passa, já era uma universidade de peso. Na segunda década do milênio esse peso só aumentou, tornando os Crimson Tides praticamente imbatíveis.

Porém Hurts não se destacou tanto assim na universidade da “maré vermelha”, tanto que teve o “emprego” (em aspas, pois os jogadores não são pagos, um absurdo) ameaçado. Como solução para esse problema ele pediu para ser transferido para Oklahoma.

Na nova universidade ele passou o carro: as defesas eram mais fracas e Hurts era experiente o suficiente para lidar com elas com alguma facilidade. Mesmo com ótimo números, a competição mais fraca contou contra e Hurts e ele foi escolhido apenas na segunda rodada do draft, na posição 53 pelo Philadelphia Eagles.

A escolha foi estranha, pois o time da Pensilvânia já contava com um QB titular escolhido a poucos anos (Carson Wentz), tanto que no primeiro ano Hurts pouco sentiu o cheiro do gramado. Apenas 4  jogos como titular e um recorde de 1 vitória e 4 derrotas. O segundo ano, já estabelecido como principal jogador da posição, ele foi melhor e o time teve o recorde mediano de 8 vitórias e 7 derrotas com sua presença.

Porém nessa temporada ele levantou voo, junto com todo time do Eagles. Apesar de se garantir no passe e estar melhor nesse fundamento a cada temporada, o grande trunfo de Hurts é a corrida, o que deixa as defesas adversárias cansadas só de pensar como vão parar o camisa 1 de Philadelphia (o guri é grande e forte).

Hurts segue mais a cartilha de como o QB negro foi visto por toda a história do futebol americano profissional, mais físico, móvel, mais interessado em correr do que passar (em contraste com o QB branco mais “cerebral”, onde você já viu esse discurso antes?), mas suas qualidades como lançador fizeram alguns comentarista morderem a língua.

Já Mahomes elevou ainda mais a qualidade da posição. Junto com Hurts ele vem para demonstrar que essa pode ser a melhor geração de QBs da história, quando aliado a nomes como Josh Allen, Justin Herbert, Joe Burrow e outros. Ou seja, esse Super Bowl já vai ser histórico por inúmeros motivos, vamos esperar que o jogo esteja à altura das expectativas.

Para mais posts sobre quarterbacks cool (ao contrário do Tom Brady), acesse o restante do blog. Mas tem assuntos para todos os gostos (sei lá, tipo heavy metal). E não deixe de assinar nossa newsletter, para não perder nenhuma novidade.

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