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Carlos, Erasmo ou como uma rádio jovem pode arruinar um gosto musical

No último mês, o Brasil (e o mundo) perdeu dois de seus maiores nomes da música. A partida de Gal Costa e Erasmo Carlos deixou um gosto amargo na boca do brasileirinho, pois eram ídolos de várias gerações de pessoas que se interessam por música. Até eu, inclusive. Para falar a verdade, tive uma relação bem diferente com esses dois artistas. Senta que lá vem história.

Comecei a prestar atenção no trabalho da Gal na metade dos anos 2000, pois passava (como qualquer jovem de humanas) pela minha fase tropicalista-mpb-de-boutique. O processo pode ser diferente de pessoa para pessoa, mas geralmente tem muitos pontos em comum com esses:

“Qualé desses Mutantes que tanto falam e que não são os X-men?”
“O Caetano não era aquele cara chato que cantava sozinho?”
“Alegria, Alegria, Tropicália. É proibido proibir"
“Tudo é divino, maravilhoso”

Chegamos até a Gal muito por conta de seus discos tropicalistas, que vamos combinar, são discassos. E é natural buscarmos outras coisas interessantes na sua discografia e tem bastante. Qualquer coletânea Millennium, Bis, Dois Momentos e outras (espécie de playlists do artista no spotify da época) revelavam diversos sucessos, muito que o jovem brasileiro dos anos 90-2000 havia ouvido meio que sem querer nas trilhas sonoras de novelas do Vale a pena ver de novo ou em versões contemporâneas de artistas quase esquecidos (EdH).

O que as coletâneas e, o tropicalismo, não mostravam era que no meio disso tudo Gal conseguiu gravar um disco que é basicamente um milagre. Esse tipo de disco aparece lá de vez em quando, um ou dois por década, especialmente se tratando de música pop. Ela gravou um disco ao vivo bom.

Antes de falar do disco da Gal é importante esclarecer algumas coisas para os jovens leitores desse blog. Existiu um período da história musical em que era moda os grandes artistas lançarem discos ao vivo. Eram quase coletâneas, contavam com os maiores sucessos e vendiam bem, afinal as melhores canções estavam lá reunidas, com a diferença que no final de cada faixa havia o canto da torcida aumentado no talo. Iron Maiden e AC/DC que o digam, a cada cinco anos lançam algo assim.

Mas a verdade é que, com raras exceções, os discos ao vivo sempre foram muito ruins. Não trazem nada de novo fora a gritaria entre as faixas e versões mal executadas de músicas que foram pensadas em estúdio. Porém, “Gal a todo Vapor” é uma dessas exceções, junto com o Bootleg series vol.4 do Bob Dylan, o MTV ao Vivo do Pato Fu e o From the Muddy Banks of the Wishkah do Nirvana (e alguns outros) está no seleto clube dos bons discos ao vivo.

Assim como o disco do Bob Dylan, “Gal a todo vapor” é dividido em duas partes, a primeira mais acústica, tranquilona, hippie de pé no chão tocando um violão. Bacana. Porém o que vem depois é uma sequência de cacetadas que fariam qualquer bandinha indie de cabelo seboso vender a alma para conseguir fazer algo igual. A audição de “Dê um Rolê”, “Pérola Negra”, “Mal Secreto” na sequência é digna de “wow, rapaiz que é isso?”. A faixa seguinte é “Como 2 e 2”, música de Caê, que também foi regravada por Roberto Carlos, e aqui chegamos no Erasmo.

Ouça aqui Gal a Todo Vapor

Carlos, Erasmo

Minha relação com o Erasmo foi completamente diferente do que aconteceu com a Gal e a culpa é (quase) toda minha. Fui escutar sua obra-prima “Carlos, Erasmo” apenas no ano passado. Um pecado, eu sei.

Para quem entende peso na música como algo mais parecido com groove do que distorção, pedal duplo e baixo cavalgante, “Carlos, Erasmo” é um disco pesadíssimo. Mesmo começando com a animada “De noite na cama”, logo ele parte para uma baixaria (no sentido musical) de tirar o fôlego: “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo”, “Dois Animais Na Selva Suja Da Rua”, “Mundo Deserto”, “26 anos de vida normal”. Uma melhor que a outra.

Fui ouvir esse disco meio que por acaso, dessas recomendações que os algoritmos de streaming de música fazem e que na maioria das vezes são erradas. Só que dessa vez eles acertaram. Apesar de ser um disco considerado um dos melhores de todos os tempos na música brasileira, eu tinha um pouco de preconceito com o Erasmo. Parte dela por conta de seu parceiro de composição, Roberto Carlos, que tem ótimos discos, mas sabe como ninguém como ser brega. A outra parte fica na conta dos radialistas gaúchos. Explico.

Ouça aqui Carlos, Erasmo

A era dos jabás destruindo o gosto musical de milhares de jovens gaúchos

Novamente, esse é um recorte histórico de quem viveu plenamente os anos 90, quando malemal se tinha internet e com certeza não havia mp3, ou seja, a possibilidade de telelécharger gratuitement qualquer discografia para aquele estudo mais aprofundado era nula. Mesmo se você desejasse comprar o CD, muito do catálogo não estava atualizado, sobrando apenas as supracitadas coletâneas. LPs, na época, era considerada tecnologia ultrapassada, cacareco. Discos que hoje valem centenas de reais eram descartados por centavos, se tanto.

Portanto não era tão fácil conhecer música nova. Haviam as revistas especializadas, como a saudosa Bizz, que supriam um pouco dessa lacuna de informação, mas escutar os discos era mais complicado. Haviam também rádios com uma programação bem eclética como a igualmente saudosa Ipanema FM, mas ela era extremamente difícil de sintonizar na Serra Gaúcha, por isso éramos obrigados a ouvir as estações jabá.

Elas continuam por aí, algumas com outro nome, mas são as mesmas. As mesmas 15 músicas tocadas à exaustão. Se você, por exemplo, detestasse Creed (algo bem normal, já que foi uma das piores bandas já criadas, quiçá a pior) era impossível fugir da execução (nos dois sentidos) de “Arms wide open” a cada meia hora na rádio.

Ainda assim, havia oásis dentro da programação. Aquele momento que o radialista poderia escolher um pedido do ouvinte ou mesmo escolher uma música de seu gosto. A possibilidade de ar puro entrando em um ambiente abafadíssimo. Porém, o problema era justamente esse, a maioria dos locutores gostava de sucesso, não necessariamente de música e oportunidades raras como essa eram desperdiçadas em desgraceiras.

Milhares de ouvidos sofrendo por décadas

Esse era o caso de uma das piores músicas criada por dois grandes nomes da música brasileira. Se trata de “A carta”, dueto entre Erasmo Carlos e Renato Russo, um duelo de breguisse da pior espécie. Lançada em 1992 era de se esperar que ela entrasse na lata de lixo reciclável da história musical, mas por algum motivo os radialistas gaúchos insistiram em tocar esse horror para os jovens por anos. Crime hediondo é pouco. Não à toa eu fiquei traumatizado, minha referência de Erasmo era esse horror. Mas felizmente conheci “Carlos, Erasmo” e o final foi feliz.

Ou seja, fiquei anos com ranço por causa de uma música chata que tocou mais do que o necessário. A pior parte é que não tive esse mesmo ranço com o Roberto. Se por algum motivo ele surgia na programação, geralmente era algo da época da jovem guarda ou ainda da melhor fase dele, a fase soul da virada dos anos 60 para os 70. Erasmo não teve a mesma sorte.

Essa história toda é apenas uma desculpa para liberar minha sede de vingança, segue uma lista de outros crimes que os radialistas gaúchos das rádios jabás cometeram, nos obrigando a ouvir esses troços sem misericórdia. Vamos todos sofrer junto:

O surto – a cera

Esse foi um caso das gravadoras multinacionais procurando the next big thing, que geralmente é uma cópia da última thing. Nesse caso, o Brasil cantava alegremente Charlie Brown Jr e o que foi que os executivos pensaram? precisamos de mais bandas como essa. O Surto (com a ironia no nome) é um dos mais horríveis atentados conta a audição alheia já registrado.

Legião Urbana – Hoje a noite não tem luar

Entre o intervalo do setlist para o MTV acústico da Legião Urbana, Renato Russo fez essa versão ex-tre-ma-men-te brega de uma música dos Menudos. Uma ideia absurda, tanto que só foi lançada depois que ele faleceu. E o resultado grotesco nos foi enfiado no ouvido sem perdão pelos programadores das rádios.

Jota Quest – todas

Não precisa de maiores explicações

Bandaliera – Campo minado

Costuma ouvir o Alemão Ronaldo nos programas de rádio da época e, preciso admitir, ele parecia um cara bem bacana, gente boa mesmo. Os mais antigos dizem que o Taranatiriça, sua banda anterior, era ótima, nunca ouvi. Dito isso, esse é um exemplo (e Jesus, outras centenas de músicas poderiam entrar aqui) de como foi criado a ideia de um Rock Gaúcho, que pode ser traduzido como rock com sotaque porto-alegrense com letras horríveis.

Soul Asylum – Runaway Train

Esse é um caso bem específico e local. Um dos programadores de rádio das rádios jabá trocou de diversas emissoras até chegar na rádio da universidade. Nesses anos todos (pelo menos até onde eu acompanhei a programação dela, até 2015 mais ou menos), pelo menos uma vez por semana essa balada sebosa tocava. Nem as mães da banda gostam tanto desse filhote de More than words do Extreme.

Extreme – More than words

¯_(ツ)_/¯

Nenhum de Nós – Astronauta de mármore

Um assassinato musical. Tenho certeza de que nunca existiu um astronauta deito de mármore. Não faz sentido.

Men at Work – todas

Não sei quem teve a ideia de que seria de bom tom existir algo como rock australiano. Uma das bandas mais famosas desse nicho, o Men at Work só funciona para aqueles que acham que o Crocodile Dundee é um filme bom e não apenas um reflexo do saudosismo de uma época melhor e mais inocente (de que é quando a o indivíduo é jovem). Ambos, filmes e bandas, foram e continuam horríveis.

O Dr. Sin – Futebol, mulher e rock’n’roll

A partir desse título dá para se ter uma noção da qualidade da música. Outra conclusão óbvia é que quem gosta dessa música certamente nunca teve uma relação sexual qualquer na vida. Existe um motivo pelo qual os jogadores de futebol brasileiros tocam aquele pagode antes dos jogos, é impossível driblar e jogar bonito ouvindo Dr. Sin.

Obviamente não vou colocar o link dessas atrocidades, quem for masoquista que vá atrás. Porém vou deixar o link do ótimo, quiçá estupendo podcast Discoteca Básica, que conta a história da gravação de discos clássicos da história. Tem episódios do Carlos, Erasmo e do Gal a Todo Vapor, porém nenhum do Jota Quest. E para mais análises acertadas sobre a indústria musical, acesse o restante de nosso conteúdo limpinho e cheiroso.

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