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Cat Power ou um pouco de felinidade para alérgicos

Em um de meus últimos posts, escrevi sobre versões de músicas de um artista (Leonard Cohen) que muito raramente gravava canções que não eram suas (dê memória, me lembro apenas de uma), e isso me fez pensar no sentido contrário, quais eram aqueles que possuíam mais versões de outros artistas do que suas?

E aí o cérebro deu piripaque, afinal existem diferentes versões desse mesmo fenômeno, alguns deles fáceis de identificar, outros nem tanto.

O primeiro é o do pessoal que ainda está começando. Geralmente, bandas novas começam a aprender suas músicas favoritas antes de compor as próprias, não é mesmo? Mas a curiosidade é que nem sempre foi assim, afinal – pelo menos em termos de música pop branca ocidental – até o começo dos anos 60, havia uma verdadeira indústria de composição e a maioria dos artistas eram meros intérpretes.

E quem começou a acabar com esse método foram justamente Beatles (por gravarem suas próprias canções) e Bob Dylan (por se tornar muito mais famosos que o restante do pessoalzinho folk). Ambos gravaram músicas de outros no começo de carreira, canções que estavam em suas primeiras apresentações ao vivo e que eles dominavam, mas de forma alguma eles são conhecidos por suas versões.

A segunda versão é bem única, é a versão Johnny Cash, que no final da carreira resolveu regravar uma centena de música com sua voz única (e cada vez mais grave) e com uma roupagem bem diferente do country básico o qual era acostumado a gravar. Os seis títulos de American Recordings trazem, na maioria das vezes, músicas contemporâneas que são cashaneadas e que dificilmente conseguem voltar íntegras para o compositor original.

Outra versão, essa mais comum e óbvia, é composta de artistas que gravaram um disco apenas de versões, é o caso de artistas tão díspares quanto Yo La Tengo, John Lennon, Tori Amos e Nei Lisboa, cada qual com seu disquinho de versões. Ainda assim, bem melhor do que roubar a obra de outro artista como se fosse sua (estou falando diretamente de Jimmy Page agora).

É nesse último grupo que entra Cat Power (ou Chan Marshall para os íntimos) que não gravou um, mas três álbuns de covers ao longo de sua carreira. O interessante dos discos de covers da Cat Power, é que eles funcionam como um fechamento das fases da cantora, fases essas que foram se distinguindo como um degradê: do alternativo ao pop, do pop para o soft-eletrônico-maternidade.

Alternativa, de verdade

Cat Power ou um pouco de felinidade para alérgicos

O começo da carreira de Cat Power é conhecido como sua fase alternativa e quando falamos de alternativa, estamos falando de um lado B de um bootleg gravado em condições precárias. Uma das fundadoras do clube lo-fi, ela gravou dois discos bem estranhos: “Dear Sir (1995)” e “Myra Lee (1996)”.

A verdade é que esses álbuns apesar de ter lá seus momentos, ainda crus, não possuem as composições de qualidade que veriam a seguir. Lançados por gravadoras pequenas e itens de colecionador, eles fazem sucesso apenas com veneradores da cantora.

Com contrato com a Matador Records (gravadora preferida dos alternativinhos raíz da década de 90), Cat Power iria lançar outros dois discos estranhos antes de seu primeiro álbum cover: “What Would the Community Think? (1996)” (gravado após uma passagem relâmpago por Nova Pádua) e “Moon Pix (1998)”, ambos estranhos e belíssimos. Neles são encontrados algumas das melhores canções da discografia de Cat Power como Metal Heart, Taking people, Cross Bone Style e Nude as The News.

A quem diga que o degradê pop começou a receber suas primeiras pinceladas em “Moon Pix” , mas a verdade é que ela se tornou uma compositora melhor, apostando menos na estranheza e mais na qualidade das canções. “The Covers Record (2000)” fecha essa primeira fase com versões bem próprias de Lou Reed, Bob Dylan e uma Satisfaction que, depois de quase 40 anos de vida, era cansada como deveria ser.

Um Coldplay que deu certo

Cat Power ou um pouco de felinidade para alérgicos

Quem viveu intensamente a fase meio-zumbi (Strokes), meio-anarco-capitalista-cristão (nu-metal) do rock na virada do milênio, sabe que o surgimento do Coldplay foi comemorado por todos que não aguentavam mais Creed, Nickelback e similares nas rádios. Da mesma forma sabem que, a partir do terceiro disco, o Coldplay cometeu um dos maiores crimes contra uma carreira musical quando, ao mirar no U2, acertou em uma estranha mistura de Jota Quest com Roupa Nova.

O que aconteceu com Cat Power foi justamente o contrário, com mais recursos e amiguinhos famosos, ela gravou dois ótimos discos “You Are Free (2003)” e “The Greatest (2006)” com uma roupagem muito mais limpa e pop que os primeiros. “You are Free” ainda conta com inúmeras músicas lo-fi, voz e violão (as melhores voz e piano), arranjos simples, porém com uma qualidade de gravação muito superior aos discos anteriores.

Já em “The Greatest” ela é outra cantora, com banda completa, metais, swing e simpatia. Foi até ali a mudança mais significativa na carreira de Cat Power, canções como a faixa-título, Lived In Bars e Love & Communication são pesadas e delicadas. Com algumas arestas aparadas, mas não todas, elas são responsáveis por transformar esse disco em um dos melhores da cantora.

Para fechar essa fase ela lançou Jukebox, com a mesma banda do disco anterior. As versões para New York, Silver Stallion e Metal Heart são maravilhosas, mas a minha preferida ainda é I Believe In You, música de Bob Dylan que, se na versão original era sobre Jesus Christ, mas que na interpretação da cantora fala justamente de Dylan (lê-se dailan).

O sol é para alguns

Cat Power ou um pouco de felinidade para alérgicos

Aqui começa a terceira e, até então, última fase da carreira da Cat Power, a fase mãe-sol. Não se trata de uma nova divindade asteca recém descoberta, nem mesmo uma tentativa da cantora de se misturar com elementos do terceiro reike, mas sim uma fase de renovação e descoberta.

Chan Marshall já anunciou ao mundo o que muita gente suspeitava, que ela conviveu a vida inteira com problemas relacionados a sua saúde psicológica e que, como é comum em uma vida de artista famoso (mesmo pertencendo a série D ou E dessa categoria), muitos desses problemas eram tratados com o consumo de bebidas e medicamentos. Por isso essa nova fase é marcada por dois momentos distintos, essa busca por um equilíbrio mental-espiritual e a maternidade.

O disco seguinte “Sun (2012)” tem seus bons momentos, mas é bem inferior aos anteriores. De cabelo curto e descolorido, ela realmente parecia numa fase ruim da vida, tentando se adaptar a uma contemporaneidade na qual ela já tinha passado.

Os blings e plonks de música eletrônica, tão característicos do indie dessa época, não acrescentaram muita coisa à qualidade das suas composições. Cat Power parecia alguém que já passou da idade tentando se enturmar em uma rave e todo mundo sabe que o que o jovem mais detesta é gente velha tentando se enturmar.

Já o disco seguinte “Wanderer (2018)” é marcado pela maternidade e por uma tentativa de recuperar um pouco da simplicidade dos primeiros discos. É um disco melancólico, tranquilo, mas que carece de maior inspiração. 

Cat Power novamente tenta interagir com o jovem (sempre um erro) e convida alguém da nova geração para dividir uma música. O problema foi que ela pediu ajuda para a pessoa errada, já que a Lana Del Rey só consegue deixar tudo mais monótono, sem graça e com ares de “pobre menina rica” de filmes e séries como “Frances Ha” e “Girls”, que tiveram seu momento no começo da década, mas que são apenas retratos de uma classe média alta pagando de pobre para fingir sofrimento.

Essa última e confusa fase felina também fechou com um disco de versões, com o título bem criativo de “Covers”. Se a escolha do título não foi da mais iluminadas, as versões sim, são ótimas interpretações, com destaque para Bad Religion do Frank Ocean, Endless Sea do Iggy Pop e These Days um dos clássicos do primeiro álbum da Nico, “Chelsea Girls”.

Confesso que esse último lançamento me trouxe um pouco mais de fé para a carreira da Cat Power e torço para que ela não confunda a maternidade com a vontade de fazer discos para crianças dormir, como foi o caso já bem explicado da Tori Amos. De qualquer forma, em alguns pontos ela nunca decepciona.

Blogueirinha

Cat Power ou um pouco de felinidade para alérgicos

Nos últimos anos, algumas atitudes que antes eram consideradas normais começaram a ser questionadas. O movimento #meToo, que expôs algumas pessoas e suas condutas degradantes, começou em Hollywood, mas também repercutiu na música. 

E se na maioria dos casos elas apenas confirmam o que todos já sabiam: que aquele vocalista seboso, egocêntrico e megalomaníaco no palco, também era uma péssima pessoa fora dele, em outros figuras simpáticas (como o vocalista do Arcade Fire, Win Butler) também caíram na malha fina de atrocidades.

Isso sem contar outros abertamentes conservadores, racistas e que – na maioria das vezes – já estavam com a carreira degringolando, então só deixaram suas opiniões equivocadas jorrarem tal esgoto a céu aberto – sim, estou falando de você Morrissey, pois o Eric Clapton todo mundo já sabia que era péssima pessoa (roubou a namorada do amiguinho e tinha opiniões racistas desde a década de 70).

Felizmente esse não é o caso de Chan Marshall, pelo contrário, quem a acompanha nas suas redes sociais sabe que ela está sempre no lado pra frentex da história. Talvez seus últimos discos não tiveram o sucesso de público e crítica que ela esperava (estou aqui projetando), mas isso não a transformou em uma artista amarga como os anteriormente citados, pelo contrário, ela parece ainda ter uma fé inexplicável  na humanidade, um poder, alguns diriam.

Para mais textos sobre os artistas que mais gosto (motivo deste site existir, ou seja, um exercício de auto-adulação) acesse o restante do blog, sempre com ótimas opiniões, mesmo quando equivocadas.

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