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Fleabag e a beleza da imperfeição

Atenção, contém vários spoilers.

Eu tenho um panteão de Deusas. Mulheres por quem sou muito apaixonada e faria qualquer coisa pra ser amiga delas. Phoebe Waller-Bridge, escritora, diretora e protagonista de Fleabag entrou para esse grupo recentemente, junto com a Wynona Ryder, Lady Gaga, PJ Harvey, Juliette Lewis e Patti Smith, Bethânia, Gal, entre outras. A Phoebe é a série, é sua alma desnudada e repartida em milhões de pedaços apenas para o nosso entretenimento, e eu tenho uma queda por mulheres intensas. 

Fleabag é uma série que causa um misto de sentimentos em um único episódio e cada um é construído de modo que você se entregue sem perceber que está tão envolvido, até que comece a chorar como uma criança. É mais que uma simples crítica ao machismo ou ao feminismo liberal.

A série se solta das amarras do convencional e do correto ao tecer uma crítica ao patriarcado de uma forma inversa que a maioria dessas histórias. Não é apresentado ao espectador uma heroína, uma mulher que sofreu e deu a volta por cima, ou uma mulher que é empoderada e luta para se afirmar em um cenário predominantemente masculino. A personagem principal é fudida, não tem outro adjetivo pra usar. E você percebe logo no começo que ela é fudida, e a série te lança um “mistério subjetivo”, por que ela é assim? 

Fleabag e a beleza da imperfeição

A personagem não tem nome. Ela é Fleabag, que em uma tradução selvagem significa “saco de pulgas”. É muito interessante como absolutamente todos os diálogos com ela ninguém fala o seu nome, nunca. O nome é algo poderoso, é a nossa identidade, a forma mais básica de como nos reconhecemos como indivíduos. 

Ninguém a chama de Fleabag na série, nem de nada, então isso nos diz “ela não é nada, ela é um saco de pulgas”, algo insignificante, alguém ocupando um espaço na sociedade que não faz nenhuma diferença. E esse é o mote inicial da série, pois nos primeiros episódios ela faz questão de mostrar ao espectador o quanto ela é uma pessoa detestável, e quer nos convencer disso a todo momento. 

O recurso mais utilizado na série é a quebra da quarta parede e aqui isso foi utilizado com maestria e cuidado, pois todas as interações da personagem com o público não são em vão e na segunda temporada isso fica mais óbvio quando as interações vão diminuindo por causa da relação da Fleabag com o Padre e da sua jornada em busca de um pouco de paz de espírito. Quando ela fala com o público, ela o aproxima com um fio invisível e o pega pela mão levando em lugares cada vez mais obscuros. 

É como se o público a tivesse conhecido na área de fumantes de um bar sujo e duvidoso e ela o convidasse para dar outro rolê potencialmente mais insalubre. E eu acho isso um dos pontos altos da série, pois com o desenrolar dos episódios, você passa da irritação com a personagem, para a empatia e para a identificação. Uma percepção bem pessoal que eu tenho sobre essa interação é que a Fleabag mostra o quanto se sente sozinha, ela fala conosco, pois somos a única coisa que ela tem para se “segurar”, caso contrário se perderia. 

Na primeira temporada vai se revelando aos poucos os motivos que levaram a personagem ao seu comportamento autodestrutivo atual. No primeiro episódio percebemos que ela é viciada em sexo, com uma auto estima muito baixa, com problemas financeiros (pois o café que ela abriu com a sua amiga não está dando lucro), não se dá bem com a irmã, detesta a madrasta (com razão) e tenta se aproximar do pai emocionalmente distante. Essa descrição pode parecer que se trata de um drama meio Woody Allen com uma pitada de Paul Thomas Anderson, mas tudo isso é misturado com uma boa dose de humor ácido-negro-britânico-pós moderno que faz a todo momento você ficar irritado com o comportamento cínico da personagem. 

Na metade da temporada, você entende algumas coisas. 

Fleabag e a beleza da imperfeição (2)

Madrasta com M maiúsculo

Fleabag sofre com a morte recente da mãe, de quem parecia ser muito próxima, e luta com o ressentimento que tem da Madrasta e do pai, pois os dois começaram a se relacionar pouco tempo depois da morte da mãe. Para piorar, a Madrasta é madrinha da Fleabag e era muito amiga dos pais. Sempre fica no ar a pergunta se a relação dos dois começou antes da morte da mãe e visivelmente isso oprime a personagem. 

E para piorar ainda mais, a madrasta trata Fleabag MUITO MAL, de uma forma cruel, mas sempre com um sorriso no rosto (e aqui eu aclamo a atuação magistral da Olivia Colman, a Meryl Streep britânica). Eu chamo isso de sutileza do mal, porque a Madrasta não é abertamente ruim, principalmente não na frente do pai ou da irmã. Ela é sutilmente ruim, como se em toda a sua interação com a enteada ela a cutucasse com uma agulha finíssima e a furasse aos poucos. E isso machuca e causa uma empatia do caralho com a personagem.

Eu uso Madrasta aqui como identificação, pois essa personagem, assim como Fleabag, não tem nome. Ela é apenas Madrasta e isso nos mostra que Fleabag não quer dar importância a ela, não quer humanizá-la, pois fazer isso e ser tratada daquela forma péssima, apenas doeria demais, então ela se afasta. 

À deriva

Todo esse rolê com a Madrasta ainda não é o bastante, pois ficamos sabendo que a melhor amiga da personagem, Boo, com quem ela abriu um café com a temática da hamster da Boo, a Hillary (sensacional), se matou de forma acidental (e muito idiota). 

Na primeira temporada parece um combo de lutos, a melhor amiga e a mãe em um curto período de tempo. Mas a cereja do bolo é revelada na segunda temporada: Fleabag carrega uma culpa gigante em relação a morte de Boo e ela se sente tão mal, tão envergonhada e tão miserável por isso, que ela se pune constantemente, seja saindo com homens terríveis, seja bebendo, seja se tratando como se valesse dois centavos. 

Nesse ponto as coisas vão fazendo mais sentido. A percepção do público em relação a personagem muda, ela se mostra mais vulnerável, ela confia no espectador ao ponto de contar a ele esse segredo em relação a morte da amiga que na primeira temporada apenas mostrou uns recortes sem muito sentido. E daí vem a empatia, pois entendemos que estamos vendo uma mulher em sofrimento que perdeu suas duas principais referências e está totalmente à deriva na vida, fazendo o melhor que pode, usando todas as defesas que conhece: a arrogância, uma pitada de niilismo, o auto desprezo, a indiferença e o deboche. 

Homens e sacerdócio

Outro ponto muito perceptível na série é a retratação dos homens. Todos são pessoas péssimas e desprezíveis, os lixos radioativos na sua mais pura essência. O pai é um banana, distante e distraído, que simplesmente não enxerga a filha. O cunhado é um ser abjeto, violento e abusivo. Os homens que a personagem leva pra casa são todos os estereótipos mais padrão do homem egocêntrico, porém inseguro e sem absolutamente nenhuma consideração por ninguém que não eles mesmos. E a Fleabag age como se fosse superior a todos eles. 

Porém, às vezes ela leva algumas rasteiras e isso é muito legal, como por exemplo, quando o cara dos dentes feios aponta que ele sabe que ela está rindo dos seus dentes, ou quando o cara que ela transa com frequência a surpreende dizendo que está apaixonado por outra e, a principal rasteira de todas, quando o Padre diz “foda-se” pra ela no restaurante. Esse momento é icônico. 

O Padre é um dos personagens principais, pois ele ajuda a Fleabag a resgatar um pouco de amor próprio e dá esperança de que as coisas talvez podem ser boas. Ele é o único homem retratado de uma forma não horrível e a cena que o espectador percebe isso é boa demais, pois apenas uma frase muda completamente a percepção da Fleabag sobre ele e, por consequência, muda a nossa também.

O Padre também não tem nome, mas aqui não é pelos mesmos motivos que Fleabag e a Madrasta, é por um coração partido. Fleabag finalmente se mostra contente e do seu jeito parece querer sair desse redemoinho de sentimentos ruins, não por causa do Padre, mas movida pelos sentimentos bons que ele provoca. Porém tudo na vida de Fleabag é imperfeito, assim como na vida real, e ela demonstra que a série não é um romance e as pessoas não vivem felizes para sempre, então não, o Padre não vai deixar a igreja pra ficar com ela. 

E cara, isso dói demais, sangra demais, parece que ela enfia uma faca no coração dos personagens e torce três vezes pra ter certeza que ele morreu, porque o último capítulo da série é triste, é lindo, mas é triste. O Padre é a única pessoa que percebe que Fleabag fala com o público e isso a desconcerta mais uma vez, pois ela não é acostumada com as pessoas realmente dando atenção a ela. 

Eu não quero dizer que o Padre é um personagem daqueles clichês do homem maravilhoso que aparece para resgatar a mocinha perdida e a colocar nos trilhos, mas ele claramente aparece para dar um sopro de vida na personagem e o que ele desperta faz com que a Fleabag chegue no final sem precisar mais falar com o público, pois ela já não se sente mais sozinha, mesmo que ele tenha ido embora. 

Fleabag e a beleza da imperfeição (4)

Bom, se você chegou até aqui, sinto que devo falar de mais algumas coisinhas pra te convencer (ou não) a ver essa série. 

Sisters of Mercy

Para (quase) terminar, eu queria falar sobre Claire, a irmã da Fleabag, uma das poucas personagens que tem nome. Claire é uma mulher bonita, inteligente e bem sucedida que é casada com um bosta, um cara que te desperta tanto desprezo que tu quer socar ele toda vez que aparece em cena. Além disso, ele tem um filho adolescente muito esquisito que nitidamente tem uma tara sexual pela Claire, o que a deixa muito desconfortável. Mas porque essa mulher maravilhosa tá nessa relação medíocre? Porque assim como a irmã, sua autoestima também é muito baixa, por motivos diferentes. 

Ela acredita que merece aquele homem péssimo e aquele enteado estranho. No início da série, a relação entre as irmãs é bem ruim, mas não explica muito bem por que. Na verdade toda a família da Fleabag tá meio cansada dela pelos comportamentos destrutivos e pelos empréstimos constantes de dinheiro. Porém, do seu jeito bem imperfeito, a personagem principal consegue, aos poucos, se reaproximar da irmã e reconectar o elo entre elas, aquele elo característico de duas pessoas tão diferentes que calharam de nascer da mesma mãe e agora tem que se suportar. 

Assim como a irmã, Claire também passa por uma jornada de mudança e autoconhecimento ao longo da série, ela passa a se dar valor, conhece um homem ótimo (que é nórdico e se chama Klare, Klare e Claire), chuta o marido embuste e se reconecta com ela mesma, uma verdadeira heroína moderna. Não só o Padre ajuda a Fleabag a sair do buraco, mas a reconexão com a irmã também é importante nesse processo, elas se juntam no luto da mãe e se apoiam terminando a série em uma relação de cumplicidade e afeto.

Fleabag e a beleza da imperfeição (3)

O que eu vou dizer agora é uma opinião bem pessoal dessa que vos escreve. Fleabag não é uma série para homens. 

Nem todo homem!

O humor, os diálogos, os conflitos (tanto sociais quanto pessoais) da personagem, a construção da narrativa faz muito sentido para as mulheres, pois quando ela fala com o espectador, na verdade ela está falando com uma amiga (lembra que a melhor amiga e a mãe morreram). “Olha esse cara que eu trouxe pra casa”, “olha como a minha madrasta é uma vaca”, “olha esse trauma que me deixou com a cabeça cagada”. 

Eu não acho que os homens, na sua maioria, consigam se identificar com essas nuances, simplesmente por uma falta de identificação. Um exemplo disso é a forma como a Fleabag vê os homens, que eu já falei um pouco acima. A maioria dos homens não vai achar graça, pois, bem, pra eles aquilo é normal, não é irônico, não é humor se você não entende o punchline. 

Mas uma mulher vai ver a mesma cena e vai entender exatamente porque aquela cena, ou aquele diálogo é engraçado e porque ele é parece verossímil e, justamente por isso, vai fazer ela rir. Eu raramente vi um homem dizer que gostou realmente de Fleabag, poucos tweets aqui ou lá, e o único que me falou pessoalmente que gostou, disse “é, gostei”, talvez mais querendo me agradar. 

Então, não é que os homens sejam burros, ou insensíveis, às vezes eles só não são o público alvo de uma obra (assim como ocorre com as mulheres também) e tá tudo bem. 

Fleabag, pra mim, é uma obra prima, tudo funciona, tudo é no ponto certo, as atuações são perfeitas, então faça um favor para você (e para mim) e veja essa série e saboreie os diálogos maravilhosos paridos pela Phoebe, ela merece (e também merece todos os prêmios que ganhou). 

Morde e assopra

E para terminar, dessa vez de verdade, a segunda temporada nos brinda com um dos monólogos mais geniais que já vi. Fleabag conhece uma mulher mais velha (a perfeita atriz Kristin Scott Thomas) em um evento e fica atraída por ela, mas ela a rejeita e faz uma reflexão sobre o que é ser mulher, de forma crua, sincera e verdadeira. Vou deixar o vídeo aqui pra você ver e concordar comigo (ou não). 

E vou deixar aqui esse bônus da cena do corte de cabelo da Claire que é uma das coisas mais engraçadas que eu já vi e às vezes eu olho de novo só pra me sentir bem. O interessante é que, logo depois dessa cena engraçada, a série já te joga na cara uma cena pesada, sobre o aborto espontâneo da Claire e você percebe como a série te faz um carinho e na sequencia te dá um tapa. 

E não é exatamente assim a vida? 

Para mais análises sobre séries e outros assuntos, acesse o restante das postagens da autora.

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