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Kyrie Irving, Mahmoud Abdul-Rauf e o terceiro reiki

Houve um momento, no começo da década de 2010, que um jogador de futebol americano, um corredor (running back para os íntimos) começou a chamar a atenção por suas comemorações. De 2010 a 2012, Arian Foster esteve na melhor fase de sua carreira e comemorava os touchdowns marcados com um namastê, uma comemoração inusitada em uma liga marcada por uma grande concentração de atletas cristãos, especialmente se contarmos os quarterbacks brancos que são quase pastores dentro e fora de campo.

Kyrie irving, Mahmoud Abdul-Rauf e o terceiro reiki

Arian Foster chamava atenção não só pelas comemorações, mas também por possuir uma personalidade, fato raro em uma liga em que qualquer tipo de ideia diferente é suprimida. Por exemplo, até pouco tempo atrás, comemorações em grupo eram penalizadas com falta. Se você acha que um jogador de futebol fala e fala e não diz nada, é porque nunca ouviu uma entrevista de algum quarterback da NFL. Na verdade eles são incentivados a não ter personalidade alguma, são um grupo de Capitães América robóticos e sem o charme hollywoodiano.

Nisso Arian era diferente, ele tinha opiniões próprias, outros interesses e namastê. Depois de se aposentar da NFL ele começou uma carreira musical e continua por aí, fazendo música e piadas com Elon Musk no twitter (assim como qualquer ser humano normal que não pertence a fã clube de milionário). Arian Foster era diferente e interessante, assim como Kyrie Irving.

Kyrie Irving é mais inteligente que todos nós

Ou pelo menos é o que ele acha…Se o desporto basquetebol tivesse a mesma popularidade do futebol, Kyrie Irving seria brasileiro. Inventividade, técnica, drible, Kyrie possui as qualidades pelas quais o jogador brasileiro é conhecido em campo só que dentro de quadra. Sua cesta para definir a final de 2016, que deu o campeonato para Cleveland Cavaliers em cima do Golden State Warriors, foi uma das mais importantes da história.

Em algum momento entre essa final e agora, Kyrie se transformou, de adorado pelos fãs e pela imprensa que o achava eloquente, ele se viu ridicularizado nas manchetes esportivas e nas redes por questionar coisas inquestionáveis. Ele acreditava que a Terra era plana. Todos riram, alguns com ele, a maioria dele. Uma bobagenzinha no meio de uma série de dramas que ocorrem diariamente na NBA.

Foi nessa época que ouvi em um podcast da ESPN americana uma diatribe de uma das participantes. Kaileigh Brandt afirmava que o que Kyrie estava fazendo era perigoso, que ao questionar algo cientificamente provado faria com que as pessoas começassem a questionar a ciência e que isso teria consequências terríveis. Ela com certeza não esperava pelo que estava por vir.

Pulamos para 2021, a temporada deste ano irá começar em outubro e com público nos ginásios, um alívio depois de quase dois anos de pandemia. Na maioria dos ginásios será um oba-oba, porém em algumas cidades existem restrições para a entrada de público, apenas pessoas vacinadas irão assistir e/ou trabalhar. Obviamente Kyrie não está vacinado e não pode jogar. Nesse ínterim, de 2016 para cá, ele saiu de duas equipes (Cleveland e o Boston Celtics) deixando um gosto amargo. Claro, ele obviamente é ainda adorado pelos fãs, porém com colegas de trabalho e imprensa a conversa é outra. Kyrie é agora um rebelde, um questionador, o problema é que ele começa a questionar as coisas erradas. Ele não acredita na eficácia da vacina, ele não acredita na indústria farmacêutica, ele faz sua própria pesquisa, ele se diz uma voz para aqueles sem voz.

Kyrie irving, Mahmoud Abdul-Rauf e o terceiro reiki

O resultado disso é mais um drama na NBA. Kyrie só pode jogar nas partidas fora de casa, mas o seu time, o Brooklyn Nets, não está nada contente com o comportamento do jogador e diz que ele só vai jogar quando puder atuar em todas as partidas. Crise, choro, lágrimas e reclamações do pessoal anti-vacina (e da extrema-direita americana) e dos fãs de Kyrie (que são muitos, afinal, ele é um Neymar da NBA), mas a imprensa apoia a decisão do time. Tudo em vão, uma nova variante do vírus começa a ameaçar a NBA, dezenas de jogadores contaminados, jogos adiados, o Brooklyn Nets está sem jogador.

Kyrie é chamado de volta, joga as partidas fora de casa e, depois de uma mudança de lei na cidade de Nova York, os dentro de casa. Tudo isso apenas para ser eliminado de forma humilhante pelo seu antigo time, o Boston Celtics.

Mais alguns dramas durante o verão americano, Kyrie pede para ser trocado, faz beicinho, novamente se denomina uma voz para aqueles sem voz, mas no final fica no time. São 35 milhões de dólares para jogar essa temporada. Ele se acredita um mártir por tomar essa decisão corajosa (de verdade). Mas esses são apenas dramas normais da NBA, que é basicamente uma novela da Glória Perez sem fim, porém o pior ainda estava por vir.

Em outubro de 2022 Kyrie Irving, novamente procurando respostas, falando eloquentemente e se achando mais inteligente do que qualquer repórter, publicou trechos de um documentário que por sua vez era baseado em um livro, lindo não é? Sim, se o tal livro-documentário não fosse recheado de ideias antissemitas. Perguntas foram feitas pela imprensa, mas ele disse que não fizera mal algum e que estava apenas buscando respostas. O ser iluminado só pediu desculpas quando sofreu uma suspensão do time que só o trouxe de volta ao elenco depois de passar por uma reciclagem. Mas duvido que ele tenha mudado suas ideias, Kyrie não vai mudar, ele se acha iluminado e uma vítima, quando na verdade ele é apenas tóxico. Se quisermos encontrar uma vítima da falta de liberdade de expressão de verdade precisamos voltar 25 anos atrás.

Mahmoud Abdul-Rauf na terra dos livres e lar dos valentes

No começo dos anos 90 Mahmoud Abdul-Rauf era uma estrela em ascensão no Denver Nuggets. Como outros astros do esporte norte-americano (como Muhammad Ali e Kareem Abdul-Jabbar) ele havia se convertido à fé muçulmana e trocado de nome, e assim como esses nomes de décadas passadas ele iria sofrer com a moral cristã.

Baseado nos princípios de sua religião, Abdul-Rauf não se juntava aos companheiros de time para cantar o hino norte-americano como é feito em to-do-jo-go-nos-EUA, ele ficava de boas no vestiário se preparando para a partida. E tudo ia correndo bem até um jornalista notar a sua ausência e perguntar o motivo. A resposta lhe causou a carreira.

Mahmoud Abdul-Rauf foi basicamente um Colin Kaepernick vinte anos antes. As normas da NBA na época eram muito mais duras, ele sofreu multas e perdeu parte do salário, Para acalmar os ânimos ele decidiu se juntar ao time durante o hino, só que em vez da mão no coração e cantoria, ele usava o momento para fazer uma oração. Não foi o suficiente. Ele foi perdendo espaço no time. No final da temporada de 1996 foi trocado para o Sacramento Kings e quase não viu mais a quadra, sua carreira na NBA – sem qualquer tipo de lesão ou declínio técnico – havia basicamente acabado.

Kyrie irving, Mahmoud Abdul-Rauf e o terceiro reiki

Uma história triste, mas que fica muito pior com a histeria coletiva. A os técnicos e os jogadores (salvo raras exceções) ficaram contra o armador dos Nuggets, os veículos de imprensa nacionais foram impiedosos, os locais ainda pior. Mas o comportamento mais ultrajante veio, obviamente, da torcida. Antes tivessem apenas o vaiado, antes tivesse recebido aquela cerveja quente na cabeça, mas Abdul-Rauf teve sua casa em Denver, onde meses atrás era ídolo, queimada.

Mahmoud Abdul-Rauf – em um país em que liberdade é gritada a todo tempo e que não possui religião ou mesmo idioma definidos por lei – não podia ser livre para acreditar na sua religião: vaiado e xingado justamente por aqueles que pregam a liberdade e as boas ideias cristãs. Mas eles não são os únicos que falam uma coisa e se comportam de forma contrária. Um novo personagem surge, especialmente na última década.

O terceiro reiki

Kyrie Irving possui uma bela tatuagem de uma mão espalmada, um símbolo fácil de encontrar nos discos do George Harrison, um dos responsáveis diretos por unir hippies com a cultura oriental. Ela representa sabedoria e busca por inspiração interior, tranquilidade e, por que não, felicidade. Não há nada de errado com esse e outros símbolos, são apenas um exemplo que nem todo “paz e amor” têm muita paz (e amor) envolvido.

E isso fica evidente em um comportamento muito fácil de perceber hoje em dia. Ele se evidencia, na maioria das vezes, em mulheres acima dos 50 anos com um corte de cabelo bem específico, o chamado “eu quero falar com o gerente”. Porém ele pode ser encontrado em todas faixas etárias e gêneros, porém vamos focar na mulher de 50 anos por ser um exemplo bem claro.

Você certamente já encontrou ela por aí: loiríssima, simpática, faz meditação, yoga, frequenta aquele centro espírita de vez em quando, a casa cheia de cristais e pedras para boas vibrações, o quarto com filtros dos sonhos, adepta da alimentação natural e do feng shui. Nas redes sociais frases de efeito de grandes escritores (pobre Clarice), flores e, é claro, uma boa dose de conservadorismo.

O terceiro reiki é essa união inusitada de cristais com campos de concentração, de mapa astral com linchamentos, de homeopatia com a klu-klux klan. Não sei como ele surgiu, qual o seu propósito, mas ela está cada vez mais presente: em Kyrie Irving em suas teorias conspiratórias (in)ofensivas e naquela senhoria simpática com um filtro dos sonhos tatuado no braço que sonha com uma limpeza étnica-cultural e que acredita que o integralismo até que tinha umas ideias interessantes.

Não sei onde isso vai dar. À medida que as fés vão sendo misturadas é de se esperar um pouco mais de boa convivência. Ao invés disso aumenta cada vez mais a intolerância, ideias que pareciam enterradas, como o anti-semitismo e a monarquia, voltam à tona e a constelação familiar é tratada como algo sério. Namastê.

Para mais análises acertadas sobre música e observações sagazes sobre culturas extraterrestres, acesse o restante de nosso conteúdo limpinho e cheiroso.

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