Como já afirmei diversas vezes neste sítio da rede mundial de computadores, “Let England Shake’ foi (junto com o já citado “Have one on me” da Joanna Newsom) o disco que mais ouvi nos últimos anos. PJ Harvey ,junto com o Radiohead, (e as retrospectivas de aplicativos de streaming não me deixam mentir) foi a artista que mais escutei nessa última década (de 2003 a 2013 foram Tori Amos e Bob Dylan – lê-se Dailan -, de 1993 a 2003 foram Beatles e Iron Maiden – e metade desses artistas já apareceram aqui – de 1983 a 1993 eu não lembro), o que é um fato inusitado para quem lançou poucos discos nos últimos anos.
Entre “Let England Shake” e “I Inside the Old Year Dying” apenas um disco, o bom porém inferior a seu antecessor “The Hope Six Demolition Project”, que funcionava quase que como uma segunda parte de “Let England Shake”, tanto na sonoridade, temas e aspectos visuais, porém um pouco menos inspirado.
“Hope Six” foi lançado em 2016, ou seja, lá se vão sete anos sem novidades sonoras de PJ Harvey. Nesse meio tempo ela contribuiu para trilhas de séries e filmes, relançou a versão demo de seus discos e, principalmente, trabalhou em seu primeiro livro de poemas, “Oram”.
É justamente esse livro que serviu de base para as canções de “Old Year”, um disco denso, esquisito, frio e marinho e que fica melhor a cada audição.
Stories from the sea
Até o lançamento de “Let England Shake”, “Stories From The City, Stories From The Sea”, disco de 2000, era o meu favorito da cantora. Ele é realmente um ótimo disco, porém é preciso dizer que ele atende um paladar auditivo mais juvenil – mais pop, com guitarras distorcidas e refrões grudentos, bem do jeitinho que o povo gosta.
Mas o interessante desse álbum em comparação com “Old Year” é o título. As histórias da cidade seriam as vivências de PJ Harvey na cidade grande e na indústria musical mainstream (naquelas né, já que estamos tratando de PJ), enquanto as histórias do mar seriam a relação da cantora com sua cidade natal, Bridport, uma cidade litorânea na região de Dorset, no Sul da Inglaterra.
Bem, e quando estamos falando em praia na Inglaterra não estamos falando de sea, sex and sun, mas de algo mais parecido com Curumim Beach no inverno. E essa relação de PJ com o litoral, a região de Dorset e seus mitos é melhor apresentada em “Old year”,
Are you Lwonesome Tonight?
Partindo do seu livro de poemas, PJ criou um disco estranho, cheio de nuances, histórias e mitos do mar, tanto que boa parte das letras contém expressões do dialeto da região de Dorset, o qual ela estudou com afinco na criação do livro.
Ao contrário dos discos anteriores, em “Old Year” não está mais presente a autoharpa, instrumento marcante da produção dos trabalhos anteriores. Mas instrumentos mais convencionais não necessariamente indicam um som mais tradicional, pelo contrário, PJ trabalha com uma parede sonora, mas não com aquela de Phil Spector – cheia de megalomania e ideias erradas – mas algo bem mais fino, sutil, tal qual as paredes de casa norte-americanas, que basta um soco para estragar.
Outro ponto interessante está na sua voz, a própria cantora pediu para que seus companheiros de banda lhe chamasse a atenção quando ela estivesse cantando com sua “voz de PJ Harvey”. Com essa pressão de tentar se reconstruir a cada nota é que ela criou esse trabalho cheio de referências a uma figura mitológica Wyman-Elvis – meio Cristo, meio Elvis Presley – e outros mitos incorporados para criar essa história assustadora de descobrimento sexual, mar e religiosidade.
Agosto (mês do desgosto)
Em conclusão, “Old Year” me lembra muito outro disco da cantora, “White Chalk” de 2007, não pela sua sonoridade, mas pela sua posição na discografia da PJ. Ambos os discos vieram depois de trabalhos que nada mais eram do que continuações menos inspiradas dos discos anteriores (tanto “Let England Shake” quanto “Stories From The City, Stories From The Sea” venceram o Mercury Prize, espécie de rainha da Festa da Uva de melhor disco inglês), “Hope Six” continua a sonoridade apresentado por “Let England Shake”, mas com temas mais atuais e menos ingleses.
Já “Uh Huh Her”, de 2004, é um dos trabalhos mais fracos da cantora inglesa, ele possui um pouco da sonoridade pop e crua do disco anterior, mas com canções menos marcantes. A parte boa é que o lançamento seguinte foi “White Chalk”, um disco completamente diferente do que PJ havia feito, lento e melancólico, quase todo ao piano (com exceção de The Piano) e com algumas pinceladas daquilo que alguns anos se tornaria “Let England Shake (outra pista está na ótima The Soldier do trabalho em parceria com John Parish “A Woman A Man Walked By”).
Ou seja, “Old Year” parece um trabalho de transição, algo feito para causar estranhamento e preparar o ouvinte para uma nova (e provavelmente ótima) fase da cantora que vem mantendo um nível elevado desde o lançamento de seu primeiro álbum, “Dry” no longínquo ano de 1992 (e que infelizmente não está em nenhum streaming). E com certeza merece uma nota melhor que os famigerados 7,9 que recebeu da revista especializada em indie blasé Pitchfork (eles deram 5,5 para stories from the city, logo isso pode ser quase que um elogio)
Para saber mais sobre as cantoras dos anos 90 que resistiram, ou não, ao implacável inimigo do tempo e a ascensão do indie folk, acesse o restante do blog.