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Sorria: e quando o filme de terror é bom?

Atenção: contém (muuuuitos) spoilers

O título deste post tem um motivo. Certa noite eu quis ver um filme de terror ruim. 

E, bom, existem vários filmes horríveis de terror. Porém, eu queria ver um tipo específico, que é ruim, mas que tem uns efeitos legais e a história não é uma fórmula manjada – americana – slasher. Algo tipo A Morte te dá Parabéns”, Rec, esses títulos meia boca que de alguma forma entretém. 

Eu tinha visto o trailer de Sorria e ele parecia se encaixar perfeitamente nesse tipo de filme que eu queria ver nessa noite.  

E não é que eu levei o maior tombo? Pois é, quando o filme de terror é bom, o mínimo que podemos fazer é reconhecer, afinal hoje em dia fazer um filme desse gênero (e eu acho que de comédia também) deve ser um desafio. 

Obviamente que “Sorria” não está no patamar A24, não se compara a “Hereditário” ou aos clássicos como “O Exorcista”, mas rapaz, mexeu comigo, e eu vou explicar por que. 

A aposta nos probleminhas mentais e sociais

Ultimamente temos visto uma leva de filmes de suspense e terror com uma pegada mais psicológica ou com “crítica social foda”. Um dos (muitos) motivos é o cansaço do público com os temas fantasmas, maldições, exorcismos, casas mal assombradas, zumbis e etc. De repente começaram a pensar “E SE a gente usasse problemas sociais ou psicológicos como os verdadeiros monstros?”. E isso deu muito certo. 

Ressalto que esta temática não é recente, desde o início do cinema muitos filmes de terror trouxeram alegorias para tratar uma questão mais cotidiana. Porém acredito que esta tendência tomou força recentemente. 

Outra coisa que tem dado certo nesses filmes são as atuações dos atores dignas de prêmios, principalmente pela entrega na atuação e a expressividade do horror da situação que o personagem está vivendo. “Midsommar”, por exemplo, é um filme que as pessoas amam ou odeiam, mas todos concordam que a atuação da Florence Pugh é o ponto alto. A questão é que a Academia simplesmente não premia filmes de terror (já aconteceu, mas é muito raro), o que se mostrou uma injustiça inúmeras vezes. 

Sorria: e quando o filme de terror é bom?
Midsommar, filme que dá medo pois foi gravado em Pomerode

O estúdio A24 (do qual eu sou muito fã) tem uma leva de obras com essa temática e o meu favorito é “Hereditário”, que nada mais é que um filme sobre luto. Aliás, como a Toni Collette não ganhou um Oscar, foge da minha compreensão. 

Um diretor que tem feito sucesso com essa temática é o Jordan Peele, que usa muito a questão racial como o tema central e como o verdadeiro “monstro” do filme. Todos os seus filmes já vem com hype, o que até agora é bem justificado. 

Sorria: e quando o filme de terror é bom?
cena de Hereditário

Mas como “Sorria” é bom se tem tudo para ser uma bomba?

Então vamos para o filme que me inspirou a escrever esse superficial e pequeno texto (superficial porque eu não vou abordar os filmes mais artísticos de terror e nem coisas técnicas, vocês me poupem). 

Sorria é de 2022, dirigido por Parker Finn e teve uma divulgação até bem expressiva para o gênero. Parker também dirigiu dois curtas metragens: “Laura hasn’t slept”, que inspirou o filme Sorria e “The Hidebehind”, que é MUITO bom, fiquei com medo uns dias depois que eu vi. 

O meu problema era com o trailer de “Sorria”, que não transmitiu direito o ambiente de tensão de forma apropriada. Parecia aqueles filmes de terror extremamente genéricos que você esquece cinco minutos depois que assiste. E era exatamente isso que eu queria ver em uma determinada noite, como contei no início deste post. 

O enredo do filme conta a história da terapeuta Rose Cotter, que trabalha em um hospital psiquiátrico e é chamada para atender uma paciente que chegou em surto. Essa paciente parece MUITO apavorada, dizendo que desde que viu seu professor se suicidar, foi amaldiçoada e vinha tendo visões. Uma entidade, força, energia maligna ou demônio a fazia ver as pessoas sorrirem de forma muito sinistra. 

Rose age de forma racional e explica que a menina estava em surto psicótico e as visões não eram reais. PORÉM, logo depois, a guria entra em surto novamente e diz que a coisa ruim tá ali e vai matar ela. A terapeuta chama a segurança, mas nesse meio tempo a paciente corta o pescoço na frente dela, enquanto sorri de uma forma tenebrosa. Aí já viu, a maldição passa  para a médica. 

No início, o mote principal e o desenvolvimento se parece muito com Corrente do Mal, filme que recomendo fortemente para quem gosta de terror, pois é uma obra-prima moderna. Mas Sorria vai além e consegue desenvolver mais os porquês da tal maldição. 

Nesse ponto eu preciso citar a atuação da atriz Sosie Bacon, que interpreta a Rose, e que segura e muito o filme. Ela consegue passar o desenvolvimento da deterioração mental da personagem de uma forma muito convincente (assim como em relação ao trauma do passado da personagem).

Sorria: e quando o filme de terror é bom?

O tema central do filme não é tão subjetivo, dá pra entender bem que tudo se trata de traumas não resolvidos, que se tu só os deixa lá, sem compreender, sem os perdoar e, o principal, sem se perdoar, eles podem te comer vivo. A Rose tem um trauma muito grande com a morte da mãe e se sente extremamente culpada, mas se recusa terminantemente a resolver, tratar e se curar desse trauma. 

A entidade retratada no filme se alimenta dos traumas das vítimas e “entra” por meio de outro trauma, que é assistir outra pessoa se suicidando (das formas mais bizarras). De uma terapeuta super equilibrada e comprometida com o trabalho, Rose vai se tornando a uma pessoa com a esquizofrenia mais braba que se pode ter, tudo isso em mais ou menos sete dias. 

O filme tem o cuidado de retratar muito bem o espiral de loucura que a médica entra, pois começa aos poucos, com uma simples paranoia, que vai escalando a perdas de noção do tempo, visões assustadoras de pessoas sorrindo de forma horrível (que é a expressão da entidade) e um pavor visível que chega a níveis insustentáveis e que a atriz demonstra muito bem. 

Além de tudo isso, o filme tem uma clima policial também, pois ela começa a investigar e ligar o caso da paciente que se matou na sua frente a outros casos em que aconteceram a mesma dinâmica. Ela chega a cinco pessoas que se mataram da mesma forma: mais ou menos sete dias depois de ver outra pessoa se suicidar. Eu sei que lendo isso, pode parecer tudo besta, mas faz sentido. 

O filme tem clichês, assim como todo filme norte-americano com distribuição expressiva e usa umas fórmulas um pouco batidas para explicar algumas coisas, mas isso não chega a atrapalhar o enredo, apenas facilita a compreensão para o público médio yankee (risos). 

Um outro ponto positivo é a construção da tensão do filme, eles usam uns recursos de câmera que eu não lembro de ter visto em outra obra. 

Sorria: e quando o filme de terror é bom?

Por exemplo, na cena que a paciente da Rose corta o pescoço, a Rose está de costas pra ela, a cena não tem trilha sonora, a Rose demora muito pra se virar e ver o que está acontecendo por que ela sabe que deu merda. A câmera fica filmando apenas a nuca da Rose enquanto a tensão se constrói, ela não quer olhar, mas ela tem que olhar e essa sensação passa para o espectador. Isso também acontece em outras cenas e eu achei um recurso muito legal e que contribuiu para o sustinho. 

A retratação da entidade, que aparece na tentativa desesperada da Rose de se livrar da maldição, poderia ter estragado todo o filme, mas PRA MIM, não estragou. Ela aparece nas cenas finais quando Rose tenta superar o seu trauma (um pouco tarde demais né, amiga?). Primeiro ela se mostra como a mãe da Rose, depois conforme a resistência mental da personagem vai crescendo, ela também vai se transformando em algo enorme, disforme, com braços e pernas gigantes, que lembra um vilão de desenhos infantis. 

E aqui o filme me lembra muito O Babadoock, outro filme maravilhoso com essa temática mais psicológica, que usa a questão da alegoria infantil para explicar a ruína mental de uma mãe cansada. 

Tá, mas qual é a do filme?

Calma, eu vou chegar lá. 

Como falei acima, o filme gira em torno dos traumas e eu não sei você, mas eu não conheço uma única alma que não tenha algum trauma, grande ou pequeno. E é isso que essa entidade busca, traumas tão grandes, que a pessoa já nem sabe mais quem é sem aquela dor.

Durante o filme fica claro que Rose é uma ótima terapeuta e escolheu essa profissão para ajudar as pessoas da forma que não foi capaz de ajudar a mãe. Mas por que ela não tratou o seu trauma? 

É exatamente isso que a terapeuta da Rose pergunta, quando ela busca a sua psiquiatra para uma receita de medicação, assim que as visões causadas pela maldição começam. A terapeuta alerta que Rose precisa enfrentar e resolver o trauma sobre a morte da mãe. Mas vocês acham que ela faz isso, toma o caminho mais longo da ressignificação, do autoconhecimento? Não, ela quer o caminho mais fácil, a medicação e o entorpecimento da memória. 

Sorria: e quando o filme de terror é bom?

A entidade do filme simplesmente é uma representação de do trauma, que para cada vítima toma uma proporção e um significado. Para Rose era a morte da mãe, para a paciente que se matou na sua frente, era a morte do avô. 

Na era da “preocupação” com a saúde mental, nunca se falou tanto na “ditadura da felicidade”. Você precisa estar bem, feliz e saudável o tempo todo, as pessoas não tem mais estrutura para lidar com os seus traumas, quiçá com os dos outros, então os escondem e se adaptam, com a mais perfeita fachada. 

O filme também traz essa crítica, principalmente com a personagem da irmã da Rose, que lida com a morte da mãe de uma forma muito diferente. A irmã entrou tanto em uma bolha de “felicidade” que não vê nada e ninguém que não ela mesma. Se esconde atrás da imagem de esposa e mãe perfeita e é nitidamente doente por controle. O trauma talvez não tenha espaço para crescer dentro dela, porque está tudo ocupado pelo ego. 

Achei o desfecho do filme um menos óbvio do que eu esperava, mesmo que eu já tenha visto aquele tipo de recurso narrativo em outros filmes, achei que funcionou aqui. Um personagem que me irritou profundamente na hora, mas que depois eu até entendi as motivações, foi o noivo.

Ele trata a narrativa da Rose como um sinal de uma doença mental grave. Pode parecer até um gaslight, mas naquela situação, quem acreditaria que uma entidade maligna está realmente tentando matar a sua noiva? Então o filme é coerente com a reação das pessoas ao redor da personagem. 

Sorria: e quando o filme de terror é bom?

A única pessoa que acredita na Rose é o ex-namorado, que também é policial, e a ajuda a investigar as mortes anteriores. Mas ele só acredita depois de ver as evidências e mesmo assim, se mantém crente de que é apenas um crime ou uma doença que pode ter se espalhado, e não algo sobrenatural (mesmo que pareça cagado de medo). 

A mensagem do filme fica clara no final: resolva seus traumas, entenda as raízes desse sofrimento, se perdoe, caso contrário, seu trauma vai crescer a ponto de se tornar um monstro e te comer de dentro pra fora. 

Para mais análises de filmes de terror – como a carreira da Lana del Rey – e como gatos ruivos são entidades demoníacas (mesmo suas donas achando que é apenas um traço de personalidade), acesse o restante dos posts da autora.

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