Logo Cohenismo

This is us e a beleza do cotidiano

Atenção! O texto a seguir possui spoilers, é por sua conta e risco.

“Todas as famílias se parecem. As infelizes o são cada uma à sua maneira”.

Essa é a primeira frase do livro “Anna Karenina”, de Liev Tolstoi e cabe como uma luva na história de vida da Família Pearson.

Eu sou muito suspeita pra falar sobre This is Us, pois quem me conhece sabe que eu sou meio obcecada por essa série, então nesse texto não haverá nenhuma crítica, apesar de eu ter algumas, pois o meu objetivo aqui é enaltecer essa obra (já vou avisando, caso você tenha vindo aqui procurar defeito).

Começando pelo começo, eu considero o primeiro episódio da série um dos mais importantes, pois apresenta ao espectador pinceladas sobre os personagens principais e dos dramas atuais vividos pela família, deixando diversos ganchos que serão explicados por meio de flashbacks. Esse episódio também mostra um personagem muito carismático que reapareceu em alguns momentos da série: o médico que fez o parto dos trigêmeos e sua analogia perfeita sobre limões, limonada e a vida.

Acredito que não teve uma única alma que não chorou ou ao menos se arrepiou nessa cena, e não tem um coração feio e peludo que passe ileso por essa série. E isso acontece porque ocorre algo que poucas séries conseguem despertar com sucesso: identificação.

Você se vê nos dilemas da Kate com o corpo e nos sonhos frustrados; na luta do Kevin em se conhecer e ser sempre a melhor versão de si mesmo; no Randall querendo ser o porto seguro de todo mundo, mas se perdendo no caminho; na Rebecca se reencontrando enquanto lida com o luto do marido; no Jack sufocando seus traumas porque nunca foi ensinado a falar sobre eles.

A narrativa da série é feita de uma forma muito interessante, pois vai revelando aos poucos os porquês dos personagens. Um dilema atual é explicado com um flashback da infância ou da adolescência dos irmãos. Ou uma tragédia é mostrada desde o seu início até suas consequências. De uma forma ou de outra, nada fica sem explicação, mesmo que demore uma ou duas temporadas.

Outra coisa que me chamou atenção no desenrolar das temporadas, é como a série constrói os personagens, mostra eles de múltiplos pontos de vista e depois os desconstrói totalmente.

A descontrução dos personagens em This is Us

This is us e a beleza do cotidiano

O melhor exemplo é o Kevin, apresentado inicialmente como o ator de Hollywood raso, fútil e viciado em remédios e álcool – um super clichê – para depois o desconstruí-lo e mostrar um homem inseguro, que perdeu sua referência paterna no momento que mais precisava de orientação e se sentiu perdido, buscando ser igual ao pai, até perceber que poderia ser ele mesmo, do seu jeito e com as suas imperfeições.

Também apresenta o Jack como o pai de família perfeito, um homem apaixonado pela esposa e totalmente dedicado à família, mas depois o mostra como uma pessoa rígida, sem meio termos, extremamente traumatizado pelo pai abusivo e pela guerra do Vietnã, e que acabou se tornando alcoólatra por não conseguir lidar com os seus demônios e que rejeitou o irmão sem absolutamente nenhuma hesitação, sem nem mesmo dar o benefício da dúvida.

O que This is us mais nos fala é: ninguém é perfeito e muitas vezes a perfeição está somente no nosso ponto de vista sobre a pessoa ou sobre uma determinada situação. E isso fica bem claro quando a série mostra o ponto de vista de cada irmão sobre a mesma lembrança, como o mesmo acontecimento afetou o personagem de uma maneira diferente, como a mesma experiência foi processada por cada um. As experiências da Kate e do Kevin são muito diferentes das do Randall, por exemplo.

Randall é negro e foi adotado pela Família Pearson depois de ser abandonado pelo pai em um quartel de bombeiros no mesmo dia em que o terceiro gêmeo de Rebecca e Jack nasce morto. Além dos dilemas de não conhecer suas origens e das dificuldades em se encontrar naquela família e comunidade branca, Randall luta com o racismo, com a ansiedade, ficando claro que ele sentia a necessidade de ser bom em tudo para “compensar” a falta de identidade que ele sentia desde criança, mesmo que tivesse sido muito feliz e amado pelos pais adotivos. Depois de adulto, Randall inicia uma saga para encontrar suas origens que só termina na última temporada e o desenvolvimento desse personagem talvez seja o mais complexo e completo da série.

Particularmente eu me senti muito tocada pela história da Kate e como ela foi a mais afetada pela morte do pai. A série explora ao máximo a ideia de que meninas são mais apegadas ao pai e têm conflitos com a mãe. Kate sempre teve problemas com peso e o corpo e via no relacionamento dos pais uma meta do relacionamento que gostaria de ter no futuro. Seu talento como cantora a leva a querer entrar na faculdade para estudar música com o total apoio de Jack e espelhada em Rebecca que também era uma ótima cantora.

Enquanto os irmãos eram talentosos e pareciam se desenvolver sem grandes problemas, Kate buscava constantemente o suporte e aprovação de Jack enquanto tentava superar sua baixa auto estima e auto imagem. Porém com a morte do pai, ela desiste de ir para a faculdade e acaba trabalhando em uma lanchonete, frustrando o sonho de ser cantora.

Kate passa anos deprimida e afundada em auto piedade, descontando a tristeza na compulsão alimentar. Quando a série começa, ela é agente de Kevin em Hollywood, mas ainda luta com a perda do pai e com a frustração de não ter conseguido ser o que sonhava. Sua jornada pelas temporadas é cheia de altos e baixos e momentos muito tocantes, principalmente de superação e eu acho que também é o “final” mais feliz do Big Three.

This is us e a beleza do cotidiano

Coadjuvantes quase protagonistas

Obviamente que eu não posso deixar de mencionar os coadjuvantes da série, que são um show à parte. Nenhum personagem principal seria tão completo na série sem seus “sidekicks”.

Toby, o primeiro marido da Kate, é uma pessoa incrível, encoraja Kate a seguir seu sonho e é o seu porto seguro quando ela precisava. Mesmo com o desandar do casamento, ele não perde seu carisma e mesmo que ele e Kate tenham se perdido um ao outro, a série nos diz que o amor nunca acaba, ele apenas se transforma.

Miguel era o melhor amigo de Jack e Rebecca e quase dez anos após a morte de Jack, ele e Rebecca se reencontram e se casam. Miguel vive na sombra do “perfeito” Jack e demora a ser aceito pelo Big Three, mas insiste, persevera e mostra que ele não quer substituir Jack, apenas quer ser ele mesmo e poder ser o melhor marido para Rebecca. E cara, ele é mesmo, até o fim. 

Beth é a minha coadjuvante favorita e talvez a mais complexa de todos. Beth conhece Randall ainda na faculdade quando estava em um momento muito ruim, tinha desistido do ballet para ir para a faculdade de arquitetura e perdido o pai. Randall é insistente e os dois começam um relacionamento que vai definir a vida de ambos até a última temporada. Beth é uma arquiteta de sucesso, mas depois de ser demitida, resolve resgatar o sonho de ser bailarina e começa a lidar com os seus demônios, a péssima relação que tem com a mãe e suas relações com a maternidade. Essa mulher é uma rocha, ela segura a barra mesmo, inclusive quando o Randall tem as crises de ansiedade e está procurando os pais biológicos, a Beth tava lá, firme e forte, cuidando da casa, das filhas e envolvida com os dilemas da troca de carreira.

Já o tio Nick é uma pena que tenha aparecido apenas nas últimas temporadas, pois ele nos fornece muita informação sobre quem o Jack era e principalmente, o motivo pelo qual Jack foi para a Guerra do Vietnã. Nick foi convocado devido a sua data de nascimento nos “drafts” que o governo fez para recrutar os jovens para a guerra. Jack, para tentar proteger o irmão mais novo, se alista voluntariamente e vai para o mesmo pelotão de Nick um tempo depois. Porém, quando ele chega lá, o irmão já estava bem afetado pela guerra.

Aconteceu um fato que faz o Jack simplesmente cortar o irmão da vid e fingir que ele estava morto, e nem mesmo a Rebecca sabia que ele estava vivinho, morando em um trailer e ainda mais desgraçado da cabeça. Kevin, nas buscas para conhecer melhor quem foi o pai, descobre que o tio está vivo e o “resgata”, trazendo-o para a família e dá um novo sentido para a vida de Nick. Esse pra mim é o maior arco de redenção do Kevin na série, o que ele faz pelo tio é um ato lindo de humanidade e afeto.

Qualidade na atuação é um diferencial

É unânime que essa série não seria o sucesso que foi (e é) se os atores não fossem muito bons e entregassem toda a carga emocional que a narrativa exige. Os Emmys e Globos de Ouro são a prova disso. Tudo é um primor, as atuações, os figurinos e as ambientações dos flashbacks, a sutileza ao mostrar os momentos mais delicados dos personagens e, principalmente, a evolução dos três irmãos até o último episódio. A série é um ciclo, assim como a vida. Começa com os adultos que ainda lidam com a sombra do pai e suas inúmeras questões mal resolvidas e termina com eles muito mais maduros e realizados, sabendo enfrentar com serenidade a perda da mãe.

This is us e a beleza do cotidiano

Termino relembrando o penúltimo episódio da série, que pra mim é mais emocionante que o último. A morte de Rebecca e a sua passagem pelas lembranças da sua vida enquanto passa por cada vagão de um trem imaginário, se despedindo de todos que amou e que foram importantes pra ela é simplesmente maravilhoso. Se você não chorou, procure ajuda profissional.

Eu sempre recomendo essa série para todo mundo, por que ela é uma das melhores coisas já feitas.  Você vive com os personagens, se emociona, se vê neles e até entende algumas questões parentais, principalmente algo que esquecemos: nossos pais não são perfeitos e nem nós, mas todos fazem o melhor que podem. Também nos relembra que tradições de família importam e muitas vezes é a cola entre gerações. É uma ótima retratação da beleza do cotidiano, do comum, em como viver pode ser lindo, desafiador e imperfeito.

Para mais textos sobre séries, música e cinema acesse o restante do blog.

Para receber as novidades do blog, assine nossa newsletter

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Nos siga nas redes sociais
Compartilhe esse post

Acesse o projeto no padrim e nos ajude a continuar criando conteúdo de qualidade.

One Hit Wonders dos anos 80 para ferver no dancefloor
Música
Cesar Mateus

One Hit Wonders dos anos 80 para ferver no dancefloor

Algumas semanas atrás causei discórdia com algum dos membros deste blog ao elaborar uma lista, de caráter puramente científico, sobre os piores hinos do rock (isso que deixei vários cacarecos fora dela). A minha intenção original era, ao final dessa lista criar um contraponto, sugestões para tirar o azedo da

Leia mais »
Guia imparcial para quem você deve torcer na NFL
NFL
Cesar Mateus

Guia imparcial para quem você deve torcer na NFL

É muito difícil saber o motivo que levou uma pessoa, pelo menos aqui no Brasil, a escolher um time de futebol para torcer. São inúmeros os fatores que contribuem para essa escolha: influência de parentes e amigos, cores e escudos, jogadores, as inúmeras quinquilharias que ganhou quando tinha apenas um

Leia mais »
Os piores hinos do rock de todos os tempos
Música
Cesar Mateus

Os piores hinos do rock de todos os tempos

Não é sempre – na verdade é quase nunca – mas os algoritmos de redes sociais, a cada eclipse lunar, acertam nos conteúdos sugeridos. Quando fui apresentado por Maikel de Abreu para o canal do carismático Rick Beato, outros canais do gênero “teoria musical da música pop” começaram a pipocar

Leia mais »
Quarterbacks novatos da temporada 2023 da NFL
NFL
Cesar Mateus

Quarterbacks novatos da temporada 2023 da NFL

Diferente de outros esportes coletivos em que – por mais que existam craques, estrelas e fominhas – não existe uma posição necessariamente mais importante que as outras (ainda mais quando elas podem ser intercambiáveis no meio da partida, um zagueiro pode partir para o ataque e fazer um gol, um

Leia mais »
PJ Harvey - I Inside the Old Year Dying
Música
Cesar Mateus

PJ Harvey – I Inside the Old Year Dying

Como já afirmei diversas vezes neste sítio da rede mundial de computadores, “Let England Shake’ foi (junto com o já citado “Have one on me” da Joanna Newsom) o disco que mais ouvi nos últimos anos. PJ Harvey ,junto com o Radiohead, (e as retrospectivas de aplicativos de streaming não

Leia mais »