Logo Cohenismo

Tori Amos e a felicidade conjugal

Uma das grandes questões envolvendo a criação artística, especialmente a música, especialmente a música pop, é “o quanto de droga é necessário para criar algo genial?” Um Keith Richards sóbrio gravaria guitarras melhores? O Rock Psicodélico não existiria se não houvesse o LSD? Essas são questões comuns e que podem ser invertidas: Caetano Veloso criaria músicas ainda melhores se consumisse uns produtinhos diferenciados? Por exemplo.

Difícil responder, afinal, cada caso é um caso. Porém todas essas questões filosóficas todas também podem ser feitas em relação à felicidade ou tristeza do compositor. Kurt Cobain ou Nick Drake precisavam ser tão tristes e depressivos para criar suas obras? Existe alguma música feliz boa?

E quando estamos falando de felicidade, estamos falando de felicidade na sua totalidade, às vezes não é necessário aquela tristeza melancólica clássica, mas pelo menos uma incomodação, aquilo que faz o artista desejar passar alguma ideia ou sentimento, e isso vai de Racionais MC’s, passando por Radiohead chegando aos Beatles.

Esses são um ótimo exemplo, já que muitas de suas músicas mais felizes (não necessariamente alegres) são as piores (Love me do, Ob-la di Ob la da e Yellow Submarine, por exemplo) enquanto saudosismo e melancolia (Strawberry fields forever), desencanto (Let it Be) e solidão (Help!) foram o ponto de partida para alguma das melhores.

Tori Amos e a felicidade conjugal - Nick Cave e Pj Harvey
Uma ideia errada que deu dois discos certos

Como dito antes, impossível saber o que inspira um artista a ponto de tirar ele da frente da televisão e resolver criar o hino de sua geração. Finais de relacionamento ou mesmo aqueles que estão chegando na beirada foram responsáveis por discos geniais: de “Rumors” do Fleetwood Mac, até “Lemonade” da Beyoncé, passando pelo término que nos deu dois discaços: “Is this Desire?” da PJ Harvey e “The Boatman’s Call” do Nick Young.

Mas e quando a pessoa é feliz no casamento e na vida em geral, feliz demais. Bom, isso não impede que ela continue a criar ótimos discos, existem um bocado de artistas que estavam bem casados ou em bons relacionamentos que potencializam sua arte. Porém, lá de vez em quando surge uma exceção, e a síndrome de Roberto Carlos.

A síndrome de Roberto Carlos

Para começar, Roberto Carlos sempre foi cafona, mas por um tempo ele foi nosso cafona. Mesmo quando escrevia hinos religiosos (Jesus Cristo) o fazia com grande inspiração, especialmente na sua fase soul, em que combinou o seu desejo de ser ídolo das multidões com swing-swing.

Porém, em algum momento da sua vida artística algo morreu, Roberto Carlos encontrou felicidade em vários casamentos e começou a lançar um disco um pior que o outro. Foi uma queda vertiginosa que descambou em especiais da Globo e uma série de transtornos obsessivos. Ele só foi retomar um pouco da boa forma quando fez o acústico da MTV e sua obra, naquilo que ela tinha de melhor, foi redescoberta por uma geração mais nova.

Tori Amos e a felicidade conjugal
Degringolou depois do disco da pena

Alguns artistas conseguiram fugir dessa armadilha, Patti Smith por exemplo ficou anos longe dos holofotes, assim como Kate Bush que ficou fazendo bolo em sua ilha privada ou Leonard Cohen que resolveu ser um monge budista. Só voltaram quando tinham algo para falar, mesmo que fossem poucos os que desejassem ouvir.

Acredito que tudo isso depende do que o artista idealiza como felicidade e o que é necessário para chegar lá. No caso de Tori Amos estamos falando de ter uma família: papai, mamãe e filhinha, uma casa com cerca recém pintada e um cachorro. E como consequência estamos acompanhando duas décadas de um disco pior que o outro.

Já sei namorar

No longínquo ano de 2004 tive meu primeiro contato musical com Tori Amos (já havia lido sobre ela em uma resenha sobre o disco “To Venus and Back” na falecida revista Bizz) através de Maikel de Abreu, que estava com seu disco de covers (Strange Little Girls) em mãos. O disco em si não me atraiu muito (e se trata de um disco bem mediano), mas a ideia de Tori sim.

Tori Amos e a felicidade conjugal
O disco: Contos da Livreira do Arco

Por isso, alguns meses depois, quando encomendei alguns CDs pela internet, me arrisquei em uma coletânea lançada no ano anterior, “Tales of a Librarian”. O encarte do disco, com suas músicas divididas como se fossem títulos de uma biblioteca, já demonstraram um pouco da sua megalomania que sempre me atraiu. Porém o disco vinha com um DVD bônus (coisa comum nos CDs lançados nos anos 2000, assim como as faixas escondidas o eram nos anos 90) e ali, na primeira visão audição, a coisa me pegou.

Dali pra frente minha obsessão foi tamanha que, mesmo alguém acostumado a ter muitas obsessões, fiquei assustado. Consumia tudo o que tinha em mãos, de um site que possui versões piratas de shows, até o último CD de estúdio lançado na época (o subestimado e extremamente megalomaníaco Scarlet ‘s Walk), até finalmente comprar toda a sua discografia importada.

Ou quase, alguns singles ficaram para trás e quando saiu a famigerada caixa “A Piano” com seu formato de piano (quem diria?) e 5 discos, basicamente uma grande coletânea e algum material inédito, a coceira foi grande, mas me controlei. As más línguas dirão que fiz aulas de piano por causa dela, mas a verdade é que eu estava mais interessado em saber tocar At my most beautiful do R.E.M e Maybe Not da Cat Power (ou seja, algo possível). Nessa obsessão surgiram também DVDs de shows, clipes e até uma autobiografia.

Tori Amos e a felicidade conjugal
A breguice, meus senhores

Um dos grandes segredos de Tori foi criar suas próprias mitologias e as inserir em suas músicas: ela foi vítima de um estupro que virou uma das músicas mais importantes da carreira (e que serviu para o seu envolvimento com uma das entidades para o acolhimento de suas vítimas, a RAINN), de sua longa amizade com Neil Gaiman (sempre referenciado em alguma música em quase todos os discos), passando por vários namoradinhos: alguns famosos como Trent Reznor, Anthony Kieds (e que lhe redeu homenagem na capa de “One Hot Minute” do RHCP) e Hunter Thompson e outros que só serviram para magoar seu coraçãozinho e nos dar canções belas e tristes. +

E tudo ia bem, até que a felicidade aconteceu.

A felicidade conjugal

Tori conheceu seu marido em 1995, nas gravações de seu terceiro disco “Boys for Pele”, e logo engatou um relacionamento que misturou o pessoal e o profissional. E apesar de um relacionamento saudável, Tori, que possui culpa o suficiente para criar sua própria religião, continuou a gravar bons discos. Mas não tão bons e não por muito tempo.

Tori Amos e a felicidade conjugal
O disco Guris para o Pelé

“From the Choirgirl Hotel” é ótimo, mas em seu sucessor “To Venus and Back” ela já perdia um pouco de fôlego. O disco de covers de 2000 é Ok e o seguinte, o supracitado “Scarlet’s Walk” é realmente bom. E foi mais ou menos nessa época, entre esses dois discos que Tori deu a luz a sua filha, homenageada na última faixa do disco, Gold Dust.

Mas o começo do fim era óbvio e a aberração “The Beekeeper” saiu em 2005 e quando pensamos que ela tinha perdido a mão, saiu “American Dolls Posse” de 2007. Apesar de ter mais canções do que deveria (18 músicas, pra que tanto?), esse foi o último suspiro de dignidade da compositora. A partir daí foi só ladeira abaixo, tanto que os últimos discos fazem “The Beekeper” parecer uma obra prima.

Tori Amos e a felicidade conjugal
O Disco Caminhando e cantando com Scarlet

E a culpa é de quem? Obviamente da felicidade. Tori vivia triste, sozinha e desamparada, compondo algumas das canções mais belas e melancólicas da sua época e resolveu casar e ter filhos. Porém, ao contrário de sua antecessora, a menina Kate Bush, infelizmente ela não quis partir para as artes culinárias.

Porém, não é certo da nossa parte torcer por um divórcio ou mesmo uma traição banal, nem mesmo que a filha que namore um Proud Boy e comece a acreditar em teorias QAnons, a felicidade de Tori deve ser preservada. E para nós, novos e velhos fãs, a única esperança que resta é que a sua discografia seja menos maculada por capas bregas e músicas idem, fedendo a felicidade.

Para ler mais sobre músicas tristes para pessoas extremamente felizes e radiantes como o autor, acesse o restante do blog. E não deixe de comentar e compartilhar.

Para receber as novidades do blog, assine nossa newsletter

Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Nos siga nas redes sociais
Compartilhe esse post

Acesse o projeto no padrim e nos ajude a continuar criando conteúdo de qualidade.

One Hit Wonders dos anos 80 para ferver no dancefloor
Música
Cesar Mateus

One Hit Wonders dos anos 80 para ferver no dancefloor

Algumas semanas atrás causei discórdia com algum dos membros deste blog ao elaborar uma lista, de caráter puramente científico, sobre os piores hinos do rock (isso que deixei vários cacarecos fora dela). A minha intenção original era, ao final dessa lista criar um contraponto, sugestões para tirar o azedo da

Leia mais »
Guia imparcial para quem você deve torcer na NFL
NFL
Cesar Mateus

Guia imparcial para quem você deve torcer na NFL

É muito difícil saber o motivo que levou uma pessoa, pelo menos aqui no Brasil, a escolher um time de futebol para torcer. São inúmeros os fatores que contribuem para essa escolha: influência de parentes e amigos, cores e escudos, jogadores, as inúmeras quinquilharias que ganhou quando tinha apenas um

Leia mais »
Os piores hinos do rock de todos os tempos
Música
Cesar Mateus

Os piores hinos do rock de todos os tempos

Não é sempre – na verdade é quase nunca – mas os algoritmos de redes sociais, a cada eclipse lunar, acertam nos conteúdos sugeridos. Quando fui apresentado por Maikel de Abreu para o canal do carismático Rick Beato, outros canais do gênero “teoria musical da música pop” começaram a pipocar

Leia mais »
Quarterbacks novatos da temporada 2023 da NFL
NFL
Cesar Mateus

Quarterbacks novatos da temporada 2023 da NFL

Diferente de outros esportes coletivos em que – por mais que existam craques, estrelas e fominhas – não existe uma posição necessariamente mais importante que as outras (ainda mais quando elas podem ser intercambiáveis no meio da partida, um zagueiro pode partir para o ataque e fazer um gol, um

Leia mais »
PJ Harvey - I Inside the Old Year Dying
Música
Cesar Mateus

PJ Harvey – I Inside the Old Year Dying

Como já afirmei diversas vezes neste sítio da rede mundial de computadores, “Let England Shake’ foi (junto com o já citado “Have one on me” da Joanna Newsom) o disco que mais ouvi nos últimos anos. PJ Harvey ,junto com o Radiohead, (e as retrospectivas de aplicativos de streaming não

Leia mais »